Só se vive uma vez!

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“Só se vive uma vez!”. Todo mundo já deve ter ouvido isso pelo menos uma vez na vida e de tão repetida, a expressão perdeu seu sentido.

Normalmente ela é usada em contextos em que se pretende cometer algum excesso ou em que o “leite já foi derramado”: comer doces até enjoar, viajar sem dinheiro, dizer tudo que pensa, fazer sexo sem proteção, deixar fluir sem pensar no depois, e assim por diante. Todavia, o caráter transgressor não é o que, de fato, nos chama a atenção. Pois, isso levaria à seara da culpa ou do raso e frágil moralismo.

Dizer que vivemos só uma vida é uma redução do ser humano a um corpo que tem prazo de validade. Acontece que não somos, de fato, uma coisa só do começo da nossa existência até o final, há fraturas a separar vários antes e depois: a vida de solteiro e o casamento, a vida a dois no casamento e a vida a três com o nascimento de um filho, a vida de quem tinha casa e a vida de quem a perdeu, a vida de quem andava em linha reta e a vida de quem resolveu pegar um atalho. Ou seja, é possível recomeçar sempre, mesmo que sejamos irremediavelmente pessimistas.

Há cerca de quatro anos, ainda antes da pandemia, demos início a um trabalho voltado para a educação de pessoas em situação de cárcere dentro de cinco presídios na região de Ribeirão Preto. No começo não foi fácil passar por aquelas inúmeras grades e ouvir o ferrolho da porta de aço se fechar nas nossas costas. Também não foi fácil ficar ali cara a cara com dezenas de homens e mulheres condenados por diversos crimes. A tensão é palpável e mensurável, mas mesmo ali podíamos sentir o anseio, o desejo de retomar a vida extramuros, de recomeçar.

Homens e mulheres que cumprem pena em regime fechado chamam sua cela de habitação. José da Silva habita a cela 5 do raio 9, do presídio x. É lá que eles vivem por anos, é lá que eles dividem a ausência de liberdade, é lá que se alimentam, que recebem a família, que assistem à TV, que leem e estudam. Se perguntarmos a cada um deles o que mais desejam naquele momento, invariavelmente, a resposta será: começar de novo!

Um grande espanto quando os encontramos pela primeira vez tem a ver com as fantasias alimentadas acerca da imagem daqueles que cometeram crimes, nós os imaginamos diferentes de nós em todos os aspectos, alguns de nossos alunos responsáveis pelas oficinas literárias relatam que ficaram surpresos com o fato deles serem iguais a nós! Sim, eles têm braços e pernas, olhos e boca; alguns têm pai e mãe, mulher e filhos, outros só têm a rua e a vida ali dentro lhes parece menos agressiva que lá fora.

Espanto ainda maior é quando percebemos que eles falam a nossa língua, que pensam sobre si mesmos, que sabem sobre ciência, artes e política. É um susto sem tamanho olhar para aqueles rostos e notar que eles poderiam ser um colega de trabalho, a filha de uma amiga, um ex-aluno…

De quando em quando, nessas conversas de sala de espera de dentista ou no supermercado, ouço a sentença de morte para quem já está morto para a sociedade: “deviam botar todos no paredão”, “bandido bom é bandido morto”, “nós ainda temos de alimentar esses vagabundos!”, “vivem lá no bem-bom!”.

Não é fácil ouvirmos isso com serenidade. Embora seja algo compreensível do começo ao fim, muitos ali cometeram crimes violentos, mas não é a realidade de todos. E voltamos à frase do início, pois, para muitos, a vida é uma coisa só, um monobloco impenetrável, uma vez escolhido o caminho, não há como voltar atrás. E de novo insistimos: o ser humano é plural!

Muitos seguem solitários em suas buscas, traçaram um caminho e seguem em frente sem muitos tropeços, sem nunca delinquir; outros não só tropeçam, caem num buraco muito fundo e só conseguem sair de lá se alguém lhes insuflar o desejo de sair e lhes aparelhar com as condições para a saída.

Em nossas oficinas de literatura, não raro, nos esquecíamos de que estávamos há muitos portões da liberdade. Os presos também se sentiam assim naquelas três horas em que passávamos juntos discutindo o livro, e foram muitos: Hamlet, Dom Casmurro, Cyrano de Bergerac, À sombra dos ciprestes, Crimes da Rua Morgue, Juiz de paz na roça e muitos outros.

Um deles, depois de ler Drummond, disse assim: Nossa vida é igual àquele vestido pendurado na parede, todo mundo finge que não vê, mas ninguém esquece! Naqueles momentos, não havia mais a professora, os meus alunos e aqueles alunos. Éramos um grupo de pessoas que gostavam de ler e que, por um tempo, podiam ser outras pessoas.

As oficinas continuam e mais do que levar alguns minutos de “liberdade” para dentro do cárcere, levam também as possibilidades de outra vida e recebem a importante lição de que o outro não é um número num processo, mas um ser humano e, enquanto há humanidade há possibilidade de transformação.