Sempre observei os números com olhar de indagação. Eles revelam na mesma proporção que ocultam. As estatísticas eliminam as faces, borram as individualidades e transformam, em alguns casos, dinâmicas histórias de vida em dados inanimados. Os números da fome, por exemplo. Os mais recentes afirmam: 828 milhões de pessoas sofrem com a fome no mundo, 193 milhões de maneira mais severa. No Brasil são 33 milhões.
O macro é alarmante, mas muitas vezes de tão estratosférico não nos permite ver o que segue por detrás dos numerais.
Todos que moram no mundo estão em um país, muitas vezes organizados em estados, e os nossos endereços nos levam para uma rua ou avenida, uma estrada ou fazenda, uma travessa ou vila, que tem um código de endereçamento postal identificado a uma cidade. É na cidade que todos moramos, até mesmo quando na zona rural.
Entre todos os milhões de pessoas que passam fome, está José que perdeu o emprego e mora em uma cidade no Brasil. Enquanto o macro nos distância, o micro nos aproxima, e o lugar mais perto é a cidade, seus bairros e suas ruas.
Não orbitamos pelo país ou pelo estado, mesmo quando estamos indo e vindo, nossas referências mais próximas são as cidades.
E é nessa perspectiva que as relações se estabelecem buscando o fortalecimento dos elos. Estando José na cidade onde também resido, sua fome deve ser a minha. Enquanto a dele é de comida, tendo eu o que comer, a minha fome deve ser de cidadania, de companheirismo, de coletividade, de comunidade, de compreensão, de comprometimento, de compaixão.
O desafio tem sido, no campo das políticas públicas, garantir estas relações de pertencimento para fazer da cidade o lugar mais perto, focalizando os bairros e as ruas, dando visibilidade às casas, às famílias e chamando José pelo seu nome.
Quando esta lógica se rompe, nada mais fica de pé. Pensar a cidade como aconchego, proteção, lar, é a base para a transformação desses espaços urbanos em lugares de permanência, de convivência e de comunidade.
Sem este primeiro avanço, é difícil defender qualquer proposta complementar. Como imaginar uma cidade sustentável, educadora, criativa, crocriadora, colaborativa, HUMANA, partindo de relações corrompidas, corrosivas, contrárias à natureza fraterna da humanidade. Que as políticas identificadas como macro, ainda que necessárias, não sejam superficiais às faces que correspondem aos números. Que José possa ser alimentado. A fome dele é minha também.