Há algumas semanas comecei a receber imagens, e comentários, sobre o número crescente de caixões acumulando-se nas igrejas e nos entrepostos da Lombardia, na Itália do Norte, até que foi preciso transferi-los para outras regiões por meio de chocantes cortejos de caminhões militares. Funerais? Nada, ou quase. Quando muito um padre jogando uma água benta e fazendo uma breve oração…
Depois chegaram as mensagens de pessoas querendo comentar – pois sabem que moro nos Estados Unidos e que faço pesquisa sobre a morte e os cemitérios – as imagens das valas comuns em New York, na Hart Island. Aqui também, nada de funerais. Nenhum sinal daquele, mais ou menos complexo, ritual de despedida do falecido que considerarmos naturalmente como ‘lógico’ e ‘necessário’.
Nos últimos dias, o Brasil tornou-se a fonte principal de muitas das imagens e mensagens que recebi: mortes no Rio, mortes em Minas Gerais, valas comuns em Manaus, valas comuns até em São Paulo… E, de novo, a grande questão da abreviação – ou do desaparecimento – do ‘último adeus’, da dignidade da morte e do morto, e da solene necessidade de acompanhar o ente querido em sua última viagem.
Penso nessas imagens, nesses comentários, nos sentimentos que eles carregam e com os quais, em boa parte, me identifico perfeitamente. Eu mesmo sou um ser cultural e ritual, um produto desta sociedade que nos ensina a encarar pouco e rapidamente a morte e, sobretudo, os cemitérios, e que, todavia, pretende que os nossos raros encontros com a morte sejam marcados pela etiqueta e pela manifestação de emoções culturalmente naturais.
Aparentemente, porém, não fui um bom aluno da nossa sociedade – pelo menos neste sentido – pois desde sempre me acostumei a olhar para os cemitérios, visitá-los, estudá-los, e a interagir e conversar com a morte e suas diversas manifestações.
Talvez por isso é que, paradoxalmente, eu enxergue um viés didático neste coronavírus.
É o viés da sorte. Minha e de todos aqueles para quem as manifestações diárias da morte sem o último adeus nesses tempos de pandemia são chocantes e insuportáveis. A sorte daqueles que não vivem à periferia das periferias das nossas cidades e/ou das nossas sociedades, e que podem deixar o verdadeiro sofrimento e a companhia da morte à periferia da própria vida diária. A sorte dos que acham que ‘valas comuns, hoje em dia, só existem em zonas de guerra’…
E aqui está a didática do coronavírus: valas comuns em Hart Island, na rica New York, sempre tiveram que ser escavadas, e sempre terão de ser. Para milhares de norte-americanos pobres – não somente em New York – a perspectiva de enterro em uma ‘vala comum’, sem padre, sem pastor, sem flores, sem velas, sem ninguém, é uma certeza desde bem antes da chegada do vírus. O rico gigante norte-americano que, hoje, se estarrece diante de suas valas comuns manifesta toda sua ignorância ou toda sua hipocrisia.
Agora, por favor, leia este último paragrafo e substitua o nome New York com São Paulo.
Isso mesmo. Dói.
Talvez, dentro de tantas dores e sofrimentos, este vírus possa ter trazido um efeito positivo:
A chance de abrimos nossos olhos e enxergar.
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