Nesta entrevista ouvimos Marcela Cury Petenusci, doutora em Engenharia Ambiental. Marcela explica com clareza como foi planejado nosso modelo atual de cidade e a importância de se discutir e realizar a reintegração da natureza nestes centros urbanos. Este é um assunto que vem ganhando cada vez mais atenção de especialistas em diversas áreas que abordam o bem estar do ser humano.
1 – Um dos passos para a Cidade Humana é religar o Humano ao Meio Ambiente, como isso é possível?
Marcela – Historicamente o homem teve, a partir do século XVI, principalmente aqui no ocidente, um crescimento das ciências pautadas num modelo segmentado de compreensão da natureza. A partir daí começamos a nos desvincular dos sistemas naturais, a almejar o controle desses sistemas e a ter parte desse controle. Partindo-se dessa realidade, a gente começou a criar, a gente construiu, estruturou paradigmas que ainda são considerados verdadeiros (eu acho que eles estão cada vez mais sendo rompidos), de que a natureza é algo que tem que ser dominado, ou que tem que ser conquistado, ou ainda que está à serviço do ser humano. Nos colocamos fora, enquanto Humanidade, do cenário dito natural. Hoje o ser humano sente-se deslocado dos sistemas naturais. A especialização foi importante para o processo de desenvolvimento científico, mas hoje percebemos que essa ruptura homem/natureza gerou vários problemas de compreensão dessa interdependência que existe entre o homem e os sistemas aos quais ele pertence. Hoje a gente revê todo esse quadro. Atualmente vemos que a Humanidade é na sua maioria urbana, sendo que no Brasil mais de 80% da população já é urbana, o que faz das cidades, por si só, grandes geradores de impacto ambiental. O homem, quando se torna preponderantemente urbano, acaba rompendo os vínculos que tem com os sistemas naturais e esse distanciamento aumenta. Existem vários estudos hoje que mostram que esse distanciamento provoca doenças efetivamente no ser humano, porque a gente tem como parte nossa essencial esse lado que é “animal” e temos que ter esse vínculo sempre relembrado com os sistemas naturais.
2 – Como hoje tentamos religar o homem ao meio ambiente?
Marcela – A primeira coisa que está acontecendo já há algum tempo é o movimento de enxergar que a Humanidade provoca transformações ambientais numa escala que é global. Não tem como imaginar que a minha ação aqui em Ribeirão Preto, de queima de combustível, por exemplo, não vai promover minimamente uma interferência do sistema ambiental como um todo, mesmo que numa escala menor. Entendemos que esses sistemas ambientais estão todos interligados e que não podem ser compreendidos a partir de divisões geopolíticas. Quando a gente começa a tomar consciência disso, entende que se você não mudarmos as regras do jogo, as estratégias, para poder estabelecer uma relação positiva com esses sistemas naturais (pensando na gestão da água, geração de energia de diversas formas, geração de resíduos, sistemas produtivos de alimentos, entre outros), estamos fadados a extinção da nossa espécie. Então, esse discurso, que não é novo, vem se estruturando faz um tempo. Nas décadas de 60 e 70 tivemos os primeiros movimentos globais no sentido de rever o percurso da Humanidade, pontuados principalmente pela Conferência de Estocolmo de 72. A partir das décadas de 80, 90, estas discussões começam a acontecer de forma um pouco mais estruturada e isso começou a provocar algumas transformações. A nível de gestão pública, a gente tem hoje modelos em que países inteiros estão se repensando em termos de processos de gestão de resíduos, de produção de energia mais eficientes para ter uma “pegada” ecológica menor. Temos tratados internacionais, conferências que vão fazendo com que os países consignatários promovam certas transformações. Então isso numa escala macro está promovendo algumas transformações que visam a produção de energia mais limpa, gestão de resíduos, de otimização de recursos, por exemplo da água de chuva que pode ser reaproveitada e do reaproveitamento de águas cinzas e negras. Então, numa escala macro, temos políticas que de alguma forma vão promover essa transformação. Mas quando se olha para nossa realidade, no nosso dia-a-dia, percebemos que vivemos numa cidade que foi historicamente concebida e construída voltada unilateralmente para a gente, para nosso bem estar enquanto ser humano. Historicamente, a maioria das cidades foram desenhadas para que seu deslocamento fosse feito através de automóveis, que os cursos de água fossem transformados em canais para levar os dejetos e esgoto para longe das áreas urbanas, sem que houvessem modelos eficientes de tratamento de resíduos, sem que as áreas urbanas fossem integradas às áreas rurais. Ainda é difícil entender o custo ambiental dos alimentos que consumimos, que, por exemplo, vem de uma região distante 500, 600 quilômetros de nós através de um transporte rodoviário. A gente vive o nosso dia-a-dia numa realidade em que nossa relação com a natureza não é positiva, não é a base sobre a qual são construídas nossas políticas, nossas paisagens ou nossas cidades. Então, podemos pensar que essa transformação, nessa escala mais próxima a nossa, só vai acontecer a partir do momento em que começarmos a quebrar essas referências.
3 – Existem atualmente exemplos concretos de iniciativas na sua área de pesquisa que permitem maior conexão com a natureza?
Marcela – Temos uma tendência hoje entre os arquitetos, urbanistas e paisagistas de que as cidades devem começar a se estruturar com base em sistemas naturais, de que os sistemas verdes devam ser a base para se pensar o traçado urbano e não o que sobra do tecido urbano. Partindo-se deste caminho, pode-se otimizar os sistemas de mobilidade não motorizada, favorecendo-se a implantação de ciclovia e o caminhar, a qualidade ambiental da cidade, a melhora nos sistemas de captação e gestão de água de chuva. No Brasil, ainda não temos muitas referências deste modelo de planejamento, mas na Suécia, na Alemanha temos exemplos de várias cidades que se organizam a partir dessa nova lógica. Um exemplo icônico é o da cidade Freiburg na Alemanha. Isso já é uma forma de reaproximar o homem com a natureza. Promover a produção de alimentos em área urbana, também é uma forma de reaproximação. Quanto mais você diminuir a distância daquilo que você consome de onde ele é produzido, mais você estabelece um vínculo de compreensão do processo de produção. Então hoje, cada vez mais, a gente tem modelos de economia que estão pautadas em produção agrícola familiar, sistemas agroecológicos – produção local e regional, favorecimento de produção em vazios urbanos, o que vai, de alguma forma, promovendo essa reconexão dos sistemas naturais com o homem. Outra questão é a gestão de resíduos, que cada vez mais precisam ser incorporadas como uma demanda pelas comunidades. É importante lembrar que tudo isso, esse processo de transformação depende de políticas públicas. Não tem como a gente imaginar que o cidadão é o responsável principal por esse processo de transformação. Esses processos vêm como resultado de políticas públicas. Outra questão importante que aproxima o homem do meio ambiente é promover a qualificação da paisagem urbana e natural associada à escala humana. Então a escala humana está começando a ser retomada como escala de qualificação dos espaços. Outros exemplos de aproximação do homem ao meio é a valorização das culturas tradicionais e o fortalecimento dessas comunidades. Temos hoje projetos de empoderamento de comunidades que estão em áreas protegidas.
4 – Como a intervenção humana sobre a paisagem natural pode interferir para melhorar esse processo?
Marcela – Temos hoje várias ações de requalificação e recuperação de áreas degradadas, não só para fortalecer os ecossistemas naturais, mas também para fomentar processos produtivos que permitam que a recuperação dessas áreas proporcione também retorno econômico. A gente vê áreas com processos produtivos baseados na agrofloresta e o fortalecimento cada vez maior da produção agrícola familiar, que também são formas de reconstruir a paisagem. A mudança na paisagem rural, a partir destes novos valores, ainda é difícil, pois parte da população ainda não enxerga o potencial econômico desse novo modelo. Eu acho que é só uma questão de tempo para que as coisas mudem. Hoje temos grandes empresas que estão já implementando sistemas de produção mais sustentáveis e menos homogêneas. No que se refere às paisagens urbanas, as transformações vêm acontecendo positivamente a partir do fortalecimento dos sistemas verdes urbanos. Então, cada vez mais a gente tem demanda por arborização urbana, parques urbanos não só para lazer e sim para fortalecer as conexões ecológicas. Temos também um movimento, em algumas cidades como Berlim, que se chama renaturalização , onde a implantação das áreas verdes e parques proporciona a volta de animais silvestres para as áreas urbanas e promovem seu convívio harmônico com os humanos.
5 – O que é arquitetura sustentável?
Marcela – Quando falamos em arquitetura sustentável, pensamos numa arquitetura que aborda sistemas de gestão energética de forma sustentável, como sistemas de captação de energia a partir de sistemas fotovoltaicos, aquecimento de água, captação e gestão de água de chuva, captação e gestão de águas negras – que é o esgoto de banheiro e de cozinha, entre outros. Esses sistemas também fazem parte e devem ser considerados como parte de uma arquitetura sustentável, mas a arquitetura sustentável tem que ser energeticamente eficiente em todas as suas etapas. A arquitetura sustentável busca a eficiência energética nas etapas de projeto, construção e funcionamento de edifício ou espaço construído. Deve-se planejar o projeto considerando o uso dos recursos que estão próximos, minimizando a distância entre onde eles são produzidos e consumidos, além da otimização destes para o mínimo de desperdício e geração de resíduos. Planeja-se uma obra que tenha um processo de construção mais limpo e eficiente e também o uso de matérias-primas com menor pegada ecológica, mais eficientes energeticamente. Quero dizer com isso que às vezes temos materiais que para serem produzidos geram um gasto energético muito grande ou grande impacto ambiental negativo. Ela também tem que atender, de forma geral, a população como um todo em questões sócio econômicas, ou seja, ela não pode ser utilizada por um grupo específico que tenha um poder aquisitivo maior. Para ser sustentável, o projeto de arquitetura tem que ser eficiente por si só. O que quero dizer com isso? Preciso ter um bom projeto de arquitetura que é eficiente energeticamente, isto é, que trabalhe, por exemplo, a circulação de ar natural, a proteção do sol mais agressivo em ambientes, onde as aberturas possibilitem a otimização entre a entrada de luz e de calor no ambiente construído, a utilização de forma correta do material para impedir ou facilitar a entrada de calor em função do lugar onde este projeto vais ser implantado. Então um projeto de arquitetura sustentável tem que ser concebido dentro deste contexto. Temos vários modelos de certificação para arquitetura sustentável, mas não necessariamente, eu preciso desta certificação para ser sustentável. Eu posso ter uma arquitetura sustentável dentro de uma comunidade que utiliza o barro que tem no local, de forma eficiente, usa mão de obra local, produz um edifício que possui conforto térmico, que faz captação de água de chuva, sendo assim sustentável. Então, a certificação é uma forma de “capitalizar” esse modelo de arquitetura, o que eu não acho errado, mas deve-se entender que só essas certificações não garantem que haja uma arquitetura sustentável.
6 – O plano diretor é o principal instrumento da política urbana brasileira. A arquitetura e o meio ambiente estão devidamente representados nessas discussões?
Marcela – O plano diretor é hoje o instrumento mais importante para o planejamento e gestão do município, não só da área urbana e sim este como um todo – incluindo a zona rural, ou deveria ser. A gente tem uma outra ferramenta que se chama PDUI que é o Plano de Desenvolvimento Integrado que tem a mesma função que o Plano Diretor, só que ele acontece para toda a Região Metropolitana. O modelo hoje mais eficiente para se trabalhar planejamento urbano é usando uma metodologia, que se chama planejamento ambiental. O planejamento ambiental trabalha de forma integrada os sistemas naturais e humanos a partir de, minimamente, um recorte territorial: a bacia hidrográfica. A bacia hidrográfica é a área de contribuição superficial de água de chuva para um curso d’água. Então para eu fazer um plano ambiental eu tenho que estudar e entender o que acontece dentro de um limite mínimo que é o da bacia hidrográfica, indo além dos limites administrativos, das cidades. Sendo assim, o plano diretor com vertente ambiental tem que considerar sistemas naturais que extravasam os limites da cidade. Neste sentido, o PDUI é um instrumento importante para que a gente entenda os sistemas naturais numa escala mais ampla e pense em estratégias para gestão do território a partir dessas escalas e consequentemente dos sistemas naturais de forma integrada. O Plano Diretor é uma ferramenta importante, mas deveria ser construído a partir de valores ambientais, ter um código de meio ambiente eficiente e que instrumentalize a cidade no seu desenvolvimento, o que na maioria das vezes não acontece. O Plano Diretor é ainda pensado de forma segmentada, ainda é um modelo de plano que nasce e se desenvolve a partir de sistemas de organização territorial segmentados, pautado nos sistemas viários ou infraestruturas cinzas e na setorização do solo urbano. A grande maioria das cidades cresceu vinculada ao automóvel e à especulação imobiliária, sendo que os sistemas naturais se tornam a sobra disso. Em Ribeirão temos mapas ambientais, mas a gente não enxerga nessas informações, por exemplo, como esses grandes sistemas verdes estruturam-se de forma integrada, não sendo estes os elementos principais de organização do território. Eu acho que a gente ainda está atrasado se olharmos para os modelos que existem de Planos Diretores em outras cidades, como Friburg na Alemanha, em que os sistemas verdes são, dentro do plano diretor, o elemento chave para a organização do território. Mundialmente, desde a década de 70 temos um planejamento urbano ambiental que já está indicando processos de desenvolvimento urbano. Se olharmos o Plano Diretor de Curitiba de 1972, ele já indicava a criação de grandes sistemas de corredores verdes, que eram parques, antes da expansão urbana naqueles territórios, para a proteção dos mananciais hídricos deles. Aqui em Ribeirão Preto, temos um ponto positivo que são as Zonas de Proteção Máxima ou ZPMs, que são zonas que protegem as margens dos cursos d’água, além das apps, ou remanescentes de vegetação nativa. Mas fora isso, ainda temos um modelo de plano no qual os sistemas naturais ficam aquém dos outros sistemas urbanos.