Artes na Formação do Cidadão | Entrevista com Maria de Fátima da Silva Costa Garcia de Mattos

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Nesta semana, a entrevista é com a professora Maria de Fátima da Silva Costa Garcia de Mattos, Doutora em Artes. Fátima abordou com profundidade a importância das artes na formação do cidadão. Um assunto que precisa ser discutido com muita atenção pela sociedade e pelo poder público.

1 – O IPCCIC trabalha com criatividade, como o ensino de arte nas escolas dialoga com essa demanda de formar pessoas mais criativas?

Maria de Fátima – Eu penso que ensinar arte é um caminho natural, ou seja, quando nós trabalhamos com o texto literário, a música, a imagem, nós também possibilitamos o aluno a realizar uma produção mais ativa, como portadores de informação e de sentido. Pensando no aluno em construção de significados, pensando na constituição desse sujeito, ele precisa ser convidado a se exercitar nas práticas de aprender a ver, observar, ouvir, atuar ou tocar, no caso de um instrumento e refletir sobre elas. A própria disciplina no ensino de artes pode permitir que os alunos aprendam também por associações, conectando conceitos, referências e conhecimentos já adquiridos talvez nas séries anteriores ou, inclusive, levando do seu dia a dia, da sua comunidade, do lugar de onde veio o aprendizado dos seus fazeres, levando para a sala de aula, o que também vai colaborar no entendimento da arte e na maneira como isso tudo pode se relacionar.

2 – O encantamento, a sensibilidade que a arte proporciona é adquirida, trabalhada ou já temos alguma predisposição para esses sentimentos?

Maria de Fátima – Eu diria que a criatividade é uma capacidade humana que pode e deve ser aperfeiçoada no contexto escolar, por meio do ensino de arte. As atividades artísticas permitem que os alunos possam pensar, como dizemos hoje, “fora da caixinha” e criarem alternativas que auxiliem esses alunos a se desenvolverem, talvez até buscando uma solução para um problema, se pensarmos no ensino construtivista, se a gente for pensar na construção de objetos em outras correntes pedagógicas de ensinar como nós temos hoje. Eu acho que para isso, os estudantes precisam ser incentivados desde cedo a expressar ideias diferentes, a ter um pensamento mais livre. A educação pela arte tem justamente esse objetivo. Penso, ainda, que é por meio da arte que o aluno começa a expor e a exercitar as suas primeiras emoções para o grupo social no qual ele está inserido. Nós podemos observar na educação infantil o fato dele exprimir a raiva, a disputa pelo brinquedo do outro, a euforia por ter marcado um gol na brincadeira em grupo e não ter ficado à espera do amigo no banco de reserva. Ele expressa isso depois da efetivação do sentir através do desenho, desses desenhos infantis que não só os professores de arte, mas todos os demais professores do ensino infantil, a própria psicóloga escolar, que podem “ler”, decifrar as emoções dessa criança, ou qualquer outro tipo de interferência emocional, que possa estar dividindo, muitas vezes, a atenção dela na sala de aula. Então, é uma forma dela exercitar suas emoções no mundo. Isso pode ser visto, inclusive, como formas da integração da arte de uma maneira mais elaborada, porque é esse processo que envolve a inteligência e o raciocínio afetivo e emocional que, até os Anos Iniciais do ensino fundamental, são importantes para o bom desenvolvimento do aluno nos conteúdos curriculares durante a sequência das disciplinas do Ensino Fundamental. Até porque, acho que é por meio da arte que os alunos podem desenvolver uma visão de mundo de maneira mais crítica, conseguindo aprimorar a linguagem e a inteligência emocional. A formação do aluno, como sujeito desse contexto escolar, passa a ser um instrumento que a arte pode impulsionar ao autoconhecimento, a comunicação das emoções, do inconsciente e também no entendimento de que existem diferentes perspectivas e pontos de vista sobre o mundo e o exercício da própria cidadania, do contexto em que essa criança/aluno, está inserido enquanto cidadão.

3 – Vocês propagam a educação em suas múltiplas formas, ensinar arte de alguma maneira colabora com a expansão da visão de mundo?

Maria de Fátima – Eu tenho certeza que é por meio da arte que a criança vai desenvolver as suas capacidades de sentir o mundo. E ainda mais, acho que somente pela arte que ela consegue perceber que o universo não é somente aquilo que ela pode ver, mas também aquilo que ela pode sentir e imaginar por meio dos desenhos, da expressividade nas cores, dos sentimentos que ela experimenta e fantasia durante a contação das histórias em sala de aula ou nas áreas de convivência dentro e fora da escola. Essa experimentação da criança/aluno nesse contexto é muito importante, porque a maneira como ela vai descrevê-las, demonstrá-las por meio do desenho, ou de alguma outra maneira, por meio de materiais artísticos, que ela pode colorir ou modelar, essa expressão do sentimento pessoal é muito importante, porque é o impulso realmente que a arte pode dar a ela para se libertar de incertezas e sentimentos e de atitudes como timidez, braveza, egoísmo, que ela possa trazer para a materialidade nas aulas de artes aquilo com que ela convive secretamente. Eu acho que é muito importante a gente proporcionar aos alunos a compreensão dos sentidos, do fazer artístico e que essas suas experiências ao pintar, cantar, dançar ou dramatizar, não sejam atividades somente com o objetivo de distrai-las da “seriedade” como a gente costuma ver dentro do contexto escolar, da seriedade das outras disciplinas, da importância do português, da matemática, como se elas somente, as outras disciplinas, fossem as mais sérias e que eu tenho que dar importância e a arte seja alguma coisa menor, que passa ao largo do currículo. Então eu vejo que essa compreensão de sentido nessas atividades, elas devem fazer parte do conhecimento da arte, do sentido da arte, hoje em campo expandido, como nós queremos que isso aconteça. É por meio da atividade artística que eles vão desenvolver a cognição, adquirir novas habilidades, inclusive quando a gente faz a integração pela interdisciplinaridade com outros conteúdos nas demais disciplinas do currículo, como a literatura, a história, a matemática na arte, tentando motivar o interesse desses alunos. Nesse sentido, a atividade artística funciona como um estímulo facilitador da aprendizagem em exercícios, principalmente de extensão da sala de aula.

4 – No Brasil há uma discrepância entre a atenção que se dá para a educação básica e a universidade. Como a primeira interfere na segunda?

Maria de Fátima – Essa pergunta é muito boa para situar nossas práticas no IPCCIC, principalmente a compreensão que nós do IPCCIC temos com relação a isso. Da minha parte vejo que a criatividade não só é importante, mas como atualmente ela se faz muito importante na vida cotidiana que damos atenção ao nosso país, às nossas histórias e, principalmente, o que acontece no entorno da escola, os conflitos e medos. Eu acho que a formação do aluno na escola básica, a gente sabe que é muito importante, no decorrer da vida universitária e profissional dele, é a formação que terá um encaminhamento necessário ao longo do seu crescimento. Então diminuir as aulas de arte no ensino fundamental, excluir o ensino de música, a antiga educação musical, muitas vezes, relegando isso tudo a uma única aula semanal, entendo que é não dar a oportunidade aos alunos, na expressão dos seus sentimentos, suas angústias reprimidas, medos, a pressão da vida diária, tanto na escola quanto em casa. O medo hoje que muitos alunos têm de ir à escola, por uma série de razões que todos nós conhecemos e acompanhamos pelas mídias, principalmente porque o adolescente hoje está muito ligado nas redes sociais e no submundo da internet, que até nós desconhecemos. Então, muitas vezes ele está ligado a um outro tipo de mundo que não é a realidade com a qual ele convive, mas ele não consegue ter essa compreensão. Falta um estímulo facilitador para que aconteça esse tipo de compreensão. E isso a gente pode reparar inclusive nas dificuldades que ele tem, no ensino da Língua Portuguesa, em uma interpretação de texto, na redação, pois a escrita da internet, o internetês, é diferente e ele não consegue fazer o “link” com o que ele diz, entre o que ele vive, o que ele pensa e o que o texto propõe. Ele não consegue entender que muitas vezes ali está a razão daquilo que ele deve fazer, que ele deve compreender para facilitar a sua vida e a compreensão da realidade em que ele vive, na cidade, no grupo social, nas festas… a rejeição que muitas vezes passa por ele e não só a afirmação da personalidade, mas a afirmação do pertencimento ao grupo que ele tanto quer, que ele tanto anseia fazer parte e conviver. E isso os movimentos artísticos da arte moderna nos mostraram como os artistas e a sociedade souberam passar por situações onde a criatividade e o impulso criativo documentaram a cena, ao mesmo tempo que renovou a perspectiva de vida. Então eu entendo que limitar o ensino de arte na escola, principalmente no ensino médio, é reduzir a possibilidade do desenvolvimento de habilidades cognitivas, criativas e narrativas do momento que ele está vivendo. Daí eu fico pensando, qual é a disciplina no currículo que prepara o aluno para uma leitura de imagem? Qual é a disciplina que prepara o aluno para a compreensão das artes visuais? A própria leitura do discurso visual que se apresenta diariamente naquilo que a gente vê e não compreende, essa cidade imagética que tomou conta do nosso cotidiano como andarilhos da cidade. Não se trata somente das formas de ver e olhar que eu estou me referindo, mas as formas de observar, de sentir e fazer sentido. Afinal de contas hoje, o ensino de artes, o domínio das artes visuais, que nós tentamos fazer principalmente para os adolescentes, não se trata mais de perguntar para ele sobre a obra de arte que ele está vendo, não se trata mais de perguntar o que o artista quis dizer, mas principalmente no aqui e agora que esse menino está vivendo, no nosso contexto cidadão e citadino em que ele vive na cidade, dentro daquilo que nós vemos ao percorrer trajetos. Como que ele entende a obra de arte de hoje, e também baseado em outros contextos históricos. Outros leitores tiveram como interpretação dessa obra desde quando ela foi concebida.

5 – Ao vender produtos, são vendidas também ideias, conceitos, comportamentos e mudanças comportamentais, geracionais também. Qual o papel da arte nesse contexto?

Maria de Fátima – A leitura das imagens, tanto fixas quanto móveis na publicação da publicidade e da arte, ela nos exercita na aquisição de uma forma de consciência. Muitas vezes é uma consciência acerca daquilo que nós estamos apreendendo por meio dessas imagens, que nos são colocadas frente a frente na cidade, no percurso diário que fazemos, da casa para escola, da casa para o supermercado, da escola para a balada, ou para a academia e assim por diante. Tem uma frase da professora Ana Mae Barbosa que eu ouvi dela no ano passado e eu acho muito interessante. Ela disse que “tirar o ensino de artes da escola e depois clamar por meio da ampliação de plateias para o teatro ou para o cinema é uma contradição”. É verdade, porque se nós tiramos do aluno a possibilidade de conviver com a imagem, conviver com a obra de arte, com a leitura dessa imagem, nós tiramos a possibilidade do aluno de compreendê-la dentro do seu contexto na sua época ou hoje dentro das suas atividades. Se nós tiramos do aluno a possibilidade de compreender os mundos através da arte, como posso clamar pelo aumento de plateia, tanto nos cinemas quanto nos teatros? A encenação da vida também se faz por meio da leitura do romance, do teatro, da expressão artística, que é tão importante para liberar os sentimentos, principalmente desses adolescentes do ensino médio. Por fim, eu acho que sem dúvida, compreender a arte na educação escolar é reconhecer que o conhecimento dela é de fundamental importância não só para a subjetividade do aluno, mas também para o desenvolvimento da sua vida universitária e profissional da qual eu estou me referindo. A gente pode ver o grande número de carreiras, profissões que ainda estão, direta ou indiretamente relacionadas à comunicação social, propaganda, divulgação, outdoors, vídeo, fotografia, produção de cenários para a televisão, para os filmes, para as novelas, decoração de interiores, que tudo isso perpassa pelo campo do design gráfico, têxtil, digital, o design de games e por que não o design de moda. Então eu acho que tirar a arte do ensino médio, como hoje tanto se discute pela BNCC, eu acho que é retirar do estudante a facilitação da compreensão, dos seus modos de pensar, de se sentir como ser social e cidadão, de perceber a conquista da sua autonomia social e na vida privada, porque tudo isso requer, sem sombra de dúvida, a presença da linguagem da arte, dos movimentos artísticos que questionaram a história e a própria sociedade de época. Que interferiram na formação na constituição do sujeito, enquanto formação escolar e psicológica, formação da mente. Isso tudo a arte traz para nós de uma maneira que para muitos choca, mas para outros acorda e nós precisamos dessa integração. O conhecimento da arte moderna no ensino médio auxilia muito na articulação da imagem visual com a cognição, através da integração do pensamento racional, afetivo, emocional e também o interesse do aluno sobre a linguagem e não somente aquilo que a escola quer que tenha de melhor, que é a linguagem discursiva e científica das evidências do mundo. Ele pode conquistar tudo isso, mas se ele tiver uma liberdade de expressar-se enquanto sujeito, enquanto adolescente, enquanto ser humano, enquanto ele tiver a oportunidade de lidar com a sua sensibilidade e puder expressá-la através da arte, eu tenho certeza de que esse aluno será muito mais bem formado e poderá adquirir principalmente um novo conceito de vida e daquilo que ele quer seguir, sem dúvida.

6 – Com 47 anos dentro das salas de aula, qual o reflexo da retirada do ensino do desenho nas escolas?

Maria de Fátima – Como professora de artes que sou, eu tenho comigo um certo desalento com a retirada do desenho no ensino Fundamental II e Médio. Para mim, retirar a possibilidade do ensino de desenho no ensino fundamental e depois no médio, e depois disso a retirada do ensino de arte, dos movimentos artísticos no ensino médio, eu acredito que isso tudo acaba resultando na dificuldade que muitos alunos encontram na vida universitária, em cursos como as engenharias, na arquitetura e urbanismo, no design e moda que nós professores percebemos de alguma forma, pela retirada dessa possibilidade de conhecimento e de prática no Ensino Médio. De qualquer forma, ainda há esperança de que se retome esse pensamento, da expressão do pensamento e da arte pelo Ensino da Arte, da Filosofia e da Sociologia.