Alguém já disse que não nascemos mulheres, nos tornamos mulheres. De fato, em função de nossas trajetórias e experiências somos encaixadas naquilo que a sociedade traçou como adequado, sem nos perguntar, sem questionar nossos desejos e opiniões quanto ao papel que nos foi dado.
E ao longo dos anos, vamos nos equilibrando entre ser o que se espera e alcançar o que se deseja. Para aquelas que desejam: se libertar da obrigatoriedade da maternidade, alcançar a realização profissional, consolidar uma relação saudável com seu corpo ante as exigências estéticas construídas por uma sociedade calcada sobre o patriarcalismo e o machismo estrutural.
E, nesse processo, muitas de nós passam a acreditar na cortina de fumaça, criada pelo combo globalização-estado neoliberal, de que nossa libertação é uma escolha individual, SEMPRE! De que embora a responsabilidade esteja sobre nossos ombros, podemos contar cada vez mais com uma rede de sororidade que há de nos proteger. Afinal vivemos os tempos das redes sociais! Da sociedade do espetáculo em que nada mais é escuso… será? Será mesmo?
A pandemia me proporcionou a oportunidade de conviver com mulheres como eu, que vivem do outro lado desse rio retórico das desigualdades. Mas elas, de fato, pensando bem, não são como eu. Tivemos trajetórias de vida muito diferentes. Muitas delas, analfabetas ou semialfabetizadas funcionais constroem seu cotidiano criando estratégias que as permitem se desconectar daquilo que sabemos, é a violência estrutural e a derivada.
Das que conheço, a grande maioria não finalizou o ensino básico, que dirá o médio. Abandono geralmente causado por uma gravidez precoce associada à necessidade de trabalho urgente. Trabalho em geral, braçal e sem qualificação técnica. E assim vão vivendo a vida, se equilibrando entre um emprego e outro, enterrando seus sonhos, criando couraças para poder seguir em frente.
Mas uma vez que se deparam com a oportunidade de empoderamento emocional, começam a se ver como indivíduos de valor, diferente daquilo que ouviram a vida toda na família, dos companheiros e de seus empregadores. Progressivamente começam a entender o que é a pobreza em suas múltiplas faces e a buscar sair da rotina de violência. Nesse sentido, essas mulheres, começam a desenvolver suas potencialidades, capacidades internas, como entende Amartya Sen.
Esse processo é condição imprescindível para o fortalecimento da micropolítica nesses determinados territórios onde a desigualdade estrutural se escancara. Nesse sentido é possível começar a pensar em um exercício de cidadania ativa. O que é uma grande esperança!
Mas como dar o salto para fora do ciclo de violência, quando a escola e a creche integral são praticamente inexistentes nas periferias. Onde a busca do trabalho precisa do dinheiro para o transporte. Dinheiro esse que certamente faltará para a refeição daquele dia. Onde a qualidade de atendimento dos serviços públicos básicos de saúde e saneamento foram desviadas por má gestão da macropolítica, descaso ancestral e, por vezes, má conduta de nossos governantes?
Nesse ponto, conceitos como meritocracia associados ao tradicional juízo de valores se mostram com toda a sua pompa e circunstância. São usados indiscriminadamente por homens e mulheres, desmistificando a ideia geral de que somos todas irmãs e fundamentando a desigualdade que permite que muitas de nós sejamos um pouco mais libertas, uma vez que nossas casa e filhos são cuidados por aquelas outras mulheres. Aquelas, do lado de lá do rio.
E o nosso preconceito dispara: Se elas quisessem, poderiam arranjar uma vida melhor. Se elas desejassem mesmo, poderiam ter menos filhos, se apartar de seus companheiros abusivos, e tantos outros “conselhos” tão comuns àqueles que não querem se comprometer porque, afinal, já pagam seus impostos…
A literatura costuma discutir cidadania de forma bastante sofisticada, o que acho apropriado. Mas na altura em que me encontro, e vendo a vida com outros olhos, penso que toda a sofisticação acadêmica da discussão esconde algo mais simples e justamente por essa razão, complexo.
Cidadania é sim a compreensão dos pacotes de direitos humanos alcançados e dos deveres que temos, uma vez inseridos no amplo quadro do Estado em que nos achamos. Mas vai além, é a trama de nossa vida que tecemos por meio das escolhas cotidianas, é a construção de uma vida boa para todos.
Finalmente, nossa busca por uma dignidade e libertação da violência depende sim do desenvolvimento de nossas potencialidades, mas não só. Sem a participação de um Estado que construa políticas públicas que busquem erradicar as desigualdades e uma educação que desarme nossa sociedade calcada no preconceito, a vida digna e a paz não serão possíveis. Nem para que vive do lado de cá do rio e nem para que vive do lado de lá.