Há algumas semanas na modalidade de teletrabalho, eu sigo meus dias nesta quarentena com pensamentos acelerados nas demandas mundiais, regionais, profissionais e pessoais. Em um looping incessante que se inicia ao acordar, perpassa meu sono e reinicia ao despertar. Angustiada, como muitos, com a situação de pandemia que enfrentamos e frente à tantas outras questões políticas e sociais que assolam nosso país, ao erguer os olhos da tela do computador durante meu home office, meu olhar surpreendentemente parou em um livro em minha estante.
Uma obra antiga de capa dura, 208 páginas, coleção de bolso. Romance policial de Agatha Christie que resgatei ao deixar a casa de meus pais, de um guarda-roupa com infiltração que aniquilou todos os livros de minha mãe. Livros estes que me contariam um pouco sobre ela (que partiu quando eu era muito jovem), seu gosto literário e que não tive tempo de apreciar e compreender. Sobrou este: “Os elefantes não esquecem”, da rainha do crime. Imediatamente saquei-o da prateleira e comecei a ler e, depois de 20 minutos, já muito havia avançado na leitura.
Em dois dias finalizei o romance e percebi que, nestes momentos em que o lia, desliguei de outros pensamentos que me atordoavam. Por instantes, apenas acompanhava os protagonistas na intenção de desvendar um crime. Me senti grata por este ímpeto que tive de abrir esse livro. Foi como se minha mãe me recomendasse a leitura. Sem querer que acabasse, eu relembrei o deleite de uma leitura despretensiosa. Rememorei o prazer de ler sem um objetivo claro ou tácito de aprendizado, com o simples desejo de acompanhar a história e a curiosidade do que vem pela frente. E não é este também o papel da literatura?
A arte é produção humana e retrata um período histórico com criticidade, e nos serve tanto para o entretenimento, para reflexão quanto para suscitar emoções. Segundo a professora e pesquisadora Maria da Glória Gohn [1], historicamente as artes sempre foram importantes para a formação e desenvolvimento de valores na sociedade. As diferentes expressões artísticas formam e informam cidadãos.
Ela é a marca de um povo, de sua expressão, a leitura de mundo de uma nação. E tem estado presente nesta pandemia nas mais diversas linguagens: lives de música, discussões literárias, livros, produções audiovisuais (sejam minisséries ou filmes) e tem nos ajudado a atravessar este momento. Ainda de acordo com Maria Glória Gohn, o cinema constitui material de valor inestimável para o desenvolvimento de senso crítico, contribuindo para a reflexão da vida, para além do cotidiano e suas necessidades imediatas.
Essas variadas expressões artísticas têm sido mediadoras em nossas constantes tentativas de atribuir sentido ou compreender o que estamos passando. Uma música, uma poesia, um filme podem ser gatilhos para despertar sentimentos que podem, eventualmente, provocar reflexividades e empatias. Reforçar a percepção de que precisamos, diante deste cenário assustador, colocar o ser humano em primeiro lugar. E isto significa um urgente senso de coletividade, de compreender que a ação individual afeta o coletivo. Que sua atitude reflete no outro que você desconhece. Somos capazes de olhar para as diferentes vulnerabilidades que se apresentam nesta pandemia e sermos solidários? Espero que sim. Pois, este momento é aterrorizante, mas não é igualmente difícil. Para grande parte da população, a dificuldade é infinitamente maior.
O título do livro que escrevi no início do texto “Os elefantes não esquecem” faz menção à aparente memória deste imponente animal que pode ser capaz de lembrar fatos que marcaram sua vida, mesmo de longa data. Assim como os elefantes, não esqueceremos de 2020. Acredito que sairemos transformados (as). A diferença é que alguns reconhecerão e outros (as) não. Muitos, ao final desta experiência, não terão seus comportamentos nem pensamentos alterados e seguirão como se nada tivesse acontecido. Mas não seremos mais os mesmos. Não esqueceremos deste momento histórico em que a solidariedade e o espírito coletivo foram tão importantes. Nos lembraremos que houve um tempo em que as crianças e jovens não puderam interagir socialmente com os colegas da escola e professores, que não podíamos nos aproximar dos amigos e parentes queridos e que, a ausência do abraço significava amor.
Essa experiência vai passar, mas, será lembrada assim como o suporte das diferentes expressões artísticas neste período. Sejamos como os elefantes e não nos esqueçamos como as diferentes linguagens e a arte nos foram essenciais, cada música, cada livro e produção audiovisual compuseram partes dessa jangada improvisada que construímos para esta travessia em mar revolto.
[1] GOHN, M. da G. Artes e aprendizagens em Coletivos de Jovens e Movimentos Sociais. Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional, Curitiba, v. 11, n.29, set./dez. 2016.
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