Refugiados | Entrevista com Ana Laura Pantoni

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Refugiados. O assunto é urgente e extremamente importante. Conversamos esta semana com Ana Laura Pantoni que enfatizou a falta de políticas públicas para esses indivíduos. Eles fogem de guerras, fome, perseguição política e também das mudanças climáticas. Abrigar é diferente de acolher, e ainda estamos distantes dessa realidade. Ana Laura é graduada em Relações Públicas e Integrante da Comissão para acompanhamento da situação dos refugiados em Ribeirão Preto em parceria com a Secretaria da Justiça e Assistência Social do município.

1 – Hoje refugiados, no passado imigrantes, como que a Cidade Humana deveria recepcionar esse público?

Ana Laura – Antes de falarmos sobre a forma ideal de recepção dessas pessoas, seria interessante fortalecermos os conceitos para estabelecermos a diferença entre os conceitos emigrante que é quem deixa seu país de origem, o imigrante que é aquele que chega num novo país e o refugiado que normalmente está em fuga do país de origem. O migrante econômico ele deixa o país voluntariamente a procura por melhores oportunidades de vida. Ele busca emprego, estudo ou segue algum familiar ou amigo que se deu bem em outro país. Ao sair como migrante, fazendo esse deslocamento de território, ele não perde seus direitos, sua nacionalidade, mesmo morando em outro país. Já os refugiados, eles normalmente estão em situação de fuga por situações extremas ligadas a temores de perseguição seja por raça, religião, nacionalidade, opinião política, direitos humanos, violações de direitos básicos. É muito comum perceber que o refugiado não leva em consideração as condições econômicas do país de acolhida tanto quanto ele preza as questões de segurança, de se sentir seguro. Sabemos que segurança é um termo muito amplo. Trazendo aqui para o Brasil, sabemos que nem de longe o Brasil está nas melhores condições, temos diversas mazelas internas que nós não conseguimos resolver. Mas na cabeça do refugiado, que foge do seu país, ele não leva em consideração essas questões, ele pensa no mínimo necessário para se sentir seguro e tentar reiniciar a vida com dignidade para si e para sua família. Por isso é importante reforçar, até na questão legal, que os termos refugiados e migrantes não são substituíveis entre si. Há uma diferença legal, crucial, entre eles. Um migrante goza da proteção do governo do seu país. Um refugiado não. Então, entendendo primeiro a diferença entre os dois vamos revisar também o que é o conceito da Cidade Humana. Cidade Humana inclusive deveria ser um pleonasmo, já que toda cidade é composta por indivíduos. Mas temos como premissa que a Cidade Humana tem como uma das suas principais características colocar o indivíduo, o ser humano em primeiro lugar, é ter essa acolhida. Então é mais que claro que uma cidade humana, acolhe e recebe, apesar das dificuldades, das limitações, dos recursos escassos, esses refugiados com todo afeto e carinho possível. A recepção é aquela que torna digna a acolhida dessas pessoas que já estão passando por um momento tão difícil de transição. Normalmente deixam familiares, deixam emprego, às vezes vem com sequelas de guerras, com mortes e traumas. Então o papel da Cidade Humana é acolher esses indivíduos da forma mais justa, afetuosa e com pertencimento, para que esses danos causados pela situação de refúgio possam ser minimizados e ressignificados na construção de uma nova realidade, numa nova cidade, num novo país, num novo território.

2 – A Cidade Humana propõe, entre os seis passos, colocar o ser humano em primeiro lugar, viver em comunidade, como que esses dois temas dialogam com a realidade dos refugiados?

Ana Laura – Todas às vezes que pensamos em comunidade pensamos na diversidade. Nossa família pode ser considerada nossa primeira comunidade, nosso primeiro contato com o próximo, com as diferenças, com as culturas, com as crenças. Depois temos a escola, que é uma outra comunidade. Temos o bairro, cidade, estado, país e vamos avançar e pensar na grande comunidade chamada planeta Terra, com diversos países. Claro que em cada território, existem diversos fatores que precisam ser levados em consideração como cultura, crença, desenvolvimento social, tempo histórico. Então temos diferenças e particularidades entre si e obviamente as diferenças legais, as regras para que possamos ou tentemos conviver minimamente com justiça, igualdade e equidade. Na prática, estamos bem longe do que funciona da forma que deveria ser na teoria. Mas esse é o caminho que nós acreditamos. Se pensarmos que como indivíduos, estamos inseridos nestas diversas formas de comunidade e que o sentido de comunidade sempre será o de troca, de acolhimento, de escuta, de criar habilidade para lidar com a diferença, aprender com as potencialidades do outro, vamos desenvolver essas questões sócio emocionais. Viver em comunidade exige esse desenvolvimento, esse amadurecimento. E se a gente volta a falar que a Cidade Humana coloca o ser humano em primeiro lugar, todos esses desdobramentos, questões, reflexões e discussões precisam ser voltados para o humano. No âmbito do desenvolvimento econômico, na política, em questões sociais, na educação, na cultura, todas essas questões que envolvem o ser humano numa comunidade precisam e devem ser pautadas tendo não o lucro, não a empresa, não o sucesso, mas sim a integridade e o ser humano em primeiro lugar. Isso parece muito óbvio, como reforçamos muito no livro, mas vemos que hoje não é nossa realidade. Esses temas dialogam totalmente com a realidade dos refugiados. Principalmente, nesse sentimento e nessa ação positiva ao acolhimento dessas pessoas, que passam por uma situação de stress, de trauma tão fortes ao ponto de terem que sair de seus países, largarem seus familiares, empregos e casas. São situações de violências extremas, psicológicas, físicas, guerras, fome, miséria… E o Direito Internacional diz que todo cidadão tem direito de procurar asilo, de buscar refúgio. Então, olhar para esses seres humanos que chegam em busca de refúgio, com olhar de acolhimento e pertencimento. Não com olhar julgador colocando aquela pessoa como mais um problema para nossa realidade. Então pensar em conceitos do que é comunidade e a nossa postura como indivíduo, dentro dessa comunidade e de como isso se manifesta no coletivo é muito importante.

3 – Quais são os direitos de um refugiado? O Brasil pode ser considerado acolhedor?

Ana Laura – Isso é muito interessante porque os direitos de um refugiado são os mesmos direitos de assistência básica que qualquer outro estrangeiro poderia ter. Os países tem suas legislações próprias, então tem países que são mais abertos a recepção dessas pessoas em situação de refúgio e outros países que não, mas a pessoa em situação de extrema vulnerabilidade ela tem o direito de buscar proteção internacional e de tentar esse acolhimento em qualquer outro país e tem até mesmo os direitos dos próprios membros do país do qual pertencemos. Então são direitos de liberdade de expressão, de movimento, proteção contra a tortura ou tratamento degradante, direitos sociais e econômicos são os mesmos que os outros indivíduos. Direito a assistência médica, trabalho, escola, documentação, direitos a eventuais programas assistenciais, entre outros. Falando pela legislação brasileira, os direitos são os mesmos. Mas na prática é diferente, infelizmente. Apesar de ser conhecido como um país acolhedor, o Brasil ainda tem uma dificuldade muito grande com imigrantes. Primeiro porque existe esse preconceito internalizado que imigrantes são vistos como problemas sociais, como gatilhos que vão alavancar e intensificar as mazelas sociais que nós já enfrentamos de desemprego, pobreza, violência, entre outras. Então muitas pessoas são contra. Vemos casos seríssimos de racismo, de xenofobia, e da própria frieza de ignorar uma realidade tão extrema, e isso vai desde o cidadão que tem pouco poder de ação até a máquina pública, os órgãos de deveriam ser responsáveis de fato pela parte prática de acolhimento dessas pessoas. Hoje o governo e a sociedade civil têm uma população imensa de imigrantes, de refugiados que estão no Brasil. São histórias e mais histórias que foram interrompidas nos seus territórios e que poderiam ter e que tem a chance de ganhar continuidade aqui. Mas para que isso ocorra os refugiados precisam ser incluídos em políticas públicas para haver uma verdadeira integração na sociedade, o que nem sempre acontece. Além da burocracia para efetivar as documentações, a gente tem a questão da exclusão do processo eleitoral e as dificuldades de adaptação mesmo do país, barreiras comuns que qualquer um de nós teríamos em relação a cultura, ao idioma, costumes, mas também a resistência dos próprios brasileiros nativos. Então há infelizmente um peso muito grande dessa rejeição e na prática pouquíssima coisa sendo feita. Muitas ações são feitas pela sociedade civil organizada, que se movimenta para acolher de alguma forma, mas há uma falta de estrutura da máquina pública, para efetivação de políticas de inserção, de integração, de acolhimento, de segurança, de saúde e de educação desses refugiados. E também de conscientização, de humanização mesmo com os brasileiros para que essas pessoas sejam vistas como seres humanos e não como um problema a mais a ser instalado na cidade ou território.

4- Existe preconceito quanto a origem dos refugiados? Um refugiado da América da América Latina aqui no Brasil, é visto da mesma maneira como os do leste Europeu, ou África?

Ana Laura – Triste falar isso, mas a xenofobia de fato todos os refugiados encontram, esse sentimento de aversão de medo, de antipatia, de rejeição em relação ao um estrangeiro. Esses sentimentos se manifestam em atitudes discriminatórias e muitas vezes violentas. Essas violências acontecem de formas verbais, físicas e psicológicas em relação aos imigrantes. As políticas locais de imigrantes no Brasil, ainda fazem muita diferenciação entre violência física e violência psicológica. Enquanto uma atua diretamente sobre o corpo a outra causa danos emocionais nas vítimas que normalmente já chegam com uma situação de fragilidade. O país abriga, mas não acolhe. Existe uma diferença muito séria sobre isso. E as mazelas que nós enfrentamos aqui com os nossos são refletidas ainda mais acentuadas com os externos. Então questões que temos como racismo, falta de inclusão, de falta de acesso, registro social, só são fortalecidas, infelizmente, com a vinda dos refugiados, que são vistos como problemas. E essa xenofobia é mais gritante quando falamos de negros, indígenas e pessoas LGBT. Por esse motivo também, temos uma necessidade urgente de uma criação de políticas públicas para integração e o cuidado com questões atreladas ao refúgio. Nós não temos isso no Brasil. São Paulo está avançando em alguns pontos, mesmo assim são políticas emergenciais, o que chamamos de “apagar incêndios”. Essa é uma realidade, não só aqui em Ribeirão Preto, mas em todo o país. Em todas nossas pesquisas percebemos que a máquina pública, com muita resistência, só começa a pensar no problema quando ele já está instalado na sua cidade.

5 – Quantos são e qual a situação de refugiados aqui em Ribeirão Preto?

Ana Laura – É importante a gente pensar que estes dados de Ribeirão Preto refletem uma parcela do que tem acontecido no Brasil e no mundo. Então a crise de refúgio no Brasil traz um principal desafio que é uma política de refúgio, o que não existe. O que existe são questões emergenciais assistenciais, mas não uma política pública que pensa na integralidade no desenvolvimento, no acolhimento e na recepção desses seres humanos. Os números que são importantes a gente ressaltar é que em maio de 2022, o número de refugiados no mundo, ultrapassou pela primeira vez a marca de 100 milhões de pessoas. No Brasil são 134 mil solicitações de pedidos de refúgio e cerca de 800 pessoas por semana cruzam a fronteira do país em busca de abrigo. Temos alguns casos gritantes e situações mais extremas que saem na mídia, como ações em resposta a situações de emergenciais como os afegãos com vistos humanitários que desejavam fugir do regime do Talibã, onde quase quatro mil afegãos desembarcaram no Brasil. Em Ribeirão quando comecei pesquisar sobre esse assunto tinha cerca de 230 pessoas de nacionalidades diversas como bolivianos, haitianos e venezuelanos, que estavam em busca de acolhimento, educação e empregabilidade. A prefeitura não tinha nenhuma política e as ações que estavam sendo realizadas ocorriam por meio de grupos da sociedade civil organizada. Então foram auxílios de instituições se organizando para educação, para aprofundar a questão do idioma, para ajudar na parte de documentação, também com alimentação, emprego e também muitas ONGs ligadas a religiões que fazem esse trabalho voluntário. Quando a gente pensa numa política pública para refugiados a gente pensa nos diversos fatores que englobam essa realidade, na questão de educação, cultural, de saúde, de segurança. São várias pastas, especialidades, que precisam caminhar em conjunto para que essas pessoas tenham um mínimo de dignidade e de possibilidade de se restabelecer. Em Ribeirão temos hoje cerca de 250 pessoas, principalmente vindas da Venezuela, mas o que mais preocupa são os waraos, que na língua nativa significa Povo da Canoa, que são índios oriundos da região norte da Venezuela, que habitam há séculos o delta do rio Orinoco. São cerca de 70 pessoas aqui em Ribeirão sendo 28 crianças. A situação é mais delicada porque além da língua – a maioria deles não fala nem espanhol – estamos falando com indígenas venezuelanos, então envolve a cultura, a alimentação, as crenças, tornando esse cenário muito delicado. E se normalmente os refugiados já sofrem com a extrema vulnerabilidade, os waraos são praticamente invisibilizados. Qualquer postura colocada como assistencial ainda tem um caráter de colonização, de imposição, de ar de superioridade e uma falta de empatia, de se colocar o ser humano em primeiro lugar. É preciso realizar uma escuta antropológica humana dentro desse acolhimento e dessa reinserção. Independente das pessoas que gostam do tema ou não, isso é uma realidade. Não é admissível mais que poder público feche os olhos para essa realidade tão sofrível, tão difícil apresentada não só aqui, mas em todo mundo. Os indígenas waraos representam um desafio jurídico, sociológico e político, porque eles transcendem a condição de imigrantes e demandam uma proteção específica. Alguns grupos da sociedade civil tem atuado, um grupo de estudos migratórios e apoio ao trabalhador imigrante da Faculdade de Direito da USP tem auxiliado com a questão da documentação, a comissão de direitos da OAB também, a faculdade de Odontologia da USP tem auxiliado com o tratamento dentário, outras ONGs e grupos de voluntários tem auxiliado na questão de alimentação, de tratativas de acolhimento, mas é ainda tudo muito, muito sofrível e tem pouca participação efetiva do município na construção dessas políticas públicas na resolução prática dessas questões que tem se apresentado na cidade.

6 – Sabemos o número de refugiados do clima e estamos preparados para essa situação?

Ana Laura – Eu vi um dado da Agência da ONU para Refugiados que número de pessoas refugiadas pelo resultado de mudanças climáticas, gira em torno de 21,5 milhões por ano desde 2010. Nestes dados além de desastres súbitos, como deslizamentos, furacões, ciclones e enchentes o aquecimento global tem dificultado muito o acesso a água potável, o que prejudica muito a plantação, criação de gado, tornando a questão da alimentação muito complexa. Outro fator preocupante é o aumento do nível do mar. Ao longo dos últimos 30 anos, a quantidade de indivíduos vivendo em áreas de alto risco de serem submersas cresceu em números exponenciais. E percebemos essa migração por causa climática dentro do Brasil. O nordeste do Brasil é o que costuma sempre aparecer como ponto de atenção, visto que a temperatura é muito alta e existe o problema de desertificação e se cria essas migrações forçadas. No sul do país está nevando em lugares que antes não nevava e está destruindo plantações. Também tem se agravado os problemas das enchentes no Sudeste Tudo isso gera uma movimentação dentro do país… então precisamos estar cada vez mais preparados. Então além de guerras, fome, tem também essas questões climáticas no mundo inteiro e tem feito muitos imigrantes procurarem o Brasil porque aqui ainda temos um clima mais ameno, sem tantos furacões, ciclones, terra boa e estações definidas.