O Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC) apresentará uma série de entrevistas com seus pesquisadores, abordando temas que estão na pauta e que são debatidos nos grupos de estudos, com o objetivo de compartilhar os conhecimentos adquiridos. Vamos ao primeiro?
A violência escolar tem crescido no Brasil, gerando preocupação e debates sobre o que pode e deve ser feito. Por este motivo, a primeira a ser entrevistada foi Marlene de Cassia Trivellato Ferreira, Doutora e Mestre em Ciência (Psicologia e Educação) pela USP, com atuação em psicologia escolar, políticas públicas da primeira infância e gestão de equipes.
1 – Anualmente, os casos de violência escolar têm crescido no Brasil. Dados da Secretaria da Educação de São Paulo mostram que após a volta das aulas presenciais, somente nos dois primeiros meses de 2022, foram registrados 4.021 casos de agressões físicas nas unidades estaduais. São 48,5% a mais do que o mesmo período de 2019, último ano de aulas presenciais antes da pandemia da Covid-19. A pandemia criou ou escancarou um comportamento latente nos jovens?
Marlene – Historicamente em nossa filogênese, trazemos o comportamento mais agressivo em nós. Nesse sentido, pela nossa história filogenética, nós somos aqueles que sobrevivemos, pois somos os mais agressivos, aqueles que investiam em suas defesas. Então, o comportamento agressivo faz parte do homem e de nossa civilização e podemos dizer que, de certa forma, a agressividade nos ajuda a sobreviver. Sem essa emoção, que move nosso comportamento agressivo, dificilmente iríamos à luta por nossas conquistas. Mas como seres sociais é imprescindível aprendermos a gerenciar as emoções para uma convivência harmoniosa, que nos favorece o bem-estar e qualidade de vida. Temos que usar essas emoções para nosso proveito e não contra nós mesmos. Isso acontece por meio da educação. Aprender a lidar com raiva, impulsividade, agressividade, favorece comportamentos mais saudáveis e a construção de relações saudáveis também. Na pandemia, ficamos com todos os sentimentos mais aflorados. O medo da morte, de lidar com a morte de entes queridos, e o isolamento do outro. No ambiente escolar, tivemos que vencer os tabus do uso das tecnologias e uma das principais queixas dos professores era que os alunos não ligavam as câmeras, mal falavam, mal escreviam no chat. Então as relações sociais, que nos permitem a possibilidade de interação para o aprendizado não somente pedagógico, mas para lidar com as emoções, ficaram prejudicadas, ou seja, a socialização ficou prejudicada. Então podemos dizer que de certa forma, aquele comportamento latente ficou exposto, sem ser lapidado. Essa solidão do isolamento impediu o trabalho desses sentimentos. A pandemia gerou essa tensão emocional de lidar com o desconhecido. Nós gostamos de ter o controle, de saber do nosso dia a dia. A quebra da rotina gerou angústias, ansiedade de como seria, como é e como será. Então, de uma maneira geral, a pandemia criou, sim, tensões que levaram muitos indivíduos, principalmente os que não tinham recursos emocionais de enfrentamento das adversidades, a se isolarem e mesmo a terem reações mais agressivas, ao mesmo tempo também escancarou aquilo que já era latente e precisava ser trabalhado do ponto de vista educacional.
2- Pode-se separar o ambiente escolar da sociedade como um todo? O comportamento do jovem no ambiente escolar pode ser diferente do que ele apresenta em casa?
Marlene – Não se pode separar esses dois ambientes. E aí vem uma questão que gera controvérsias. Porque existe uma concepção de que a escola é reflexo da sociedade. Mas também não podemos esquecer que a escola é a geradora dessa violência, porque como fenômeno social a escola promove relações sociais, dando modelos, oportunidades para os indivíduos aprenderem a se relacionar, inclusive com intervenções que ela promove. Por exemplo, diante de uma situação de bullying, se a escola fecha os olhos e não intervém de alguma maneira, ela fica conivente com aquela violência e proporciona mais espaço para a violência. Nesse sentido, a escola deixa de acolher aquele que sofre e também deixa de mostrar outra forma de se relacionar para aquele que pratica a violência. Temos o costume de chamar aquele que realiza a violência de “tirano”, mas esse agressor também tem que ser acolhido e trabalhado. Provavelmente, ele foi uma criança exposta a um ambiente hostil e que gerou prejuízo em seu repertório de recursos emocionais, não sabe lidar com a raiva, frustração…Não estamos cultivando a figura do coitadinho, mas sim refletindo se como seres sociais proporcionamos ao outro oportunidade de reconhecer que existem outras formas de se comportar, que não leve a violência. Sob uma concepção sistêmica do desenvolvimento humano, sabemos que muitas crianças estão submetidas a fatores de risco inúmeros, como as próprias características pessoais e as condições socioeconômicas vulneráveis, mas sabemos também, que a escola e a sociedade contam com inúmeros fatores de proteção que podem contribuir para quebrar a trajetória, que leva a violência. Os fatores de proteção não se baseiam apenas na punição, mas sim na escuta ativa, na oportunidade de fala, em programas educacionais para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, que se mostram efetivos no combate à violência.
3 – Qual o papel da tecnologia no aumento da violência? Temos como controlar seus efeitos?
Marlene – A tecnologia, como todas as ferramentas que podemos utilizar na nossa vida, precisa ser submetida à relação entre a razão e a emoção. Quando falamos da razão, falamos do uso da inteligência para resolução de problemas, levantamento de demandas e a formulação e organização de estratégias para resolução dos problemas encontrados. Tínhamos um problema, viajar para outros países, criou-se o avião e esse mesmo veículo se tornou um instrumento de guerra. Nesse sentido, as tecnologias estão aí e estão sendo muito úteis para nós. Imagina se não tivéssemos a tecnologia, não teríamos conseguido dar aulas na pandemia. Mas ainda precisamos aprender a lidar com a tecnologia para que ela não seja meios de ataques, manobras de massa, fake News e de instigação de conflitos. E aí entra a emoção. Vemos em outros países práticas de controle de permanência diante das telas, nos processos educacionais, com críticas e reflexões. A tecnologia não pode tomar conta das nossas relações, fragilizando cada vez mais nosso bem-estar, gerando angústia e ansiedade. Como qualquer ferramenta, deve ser submetida ao nosso juízo de valores, o que valorizo e desejo para mim e para minhas relações. As mídias sociais fazem acreditar que a vida do outro está cheia de glamour e que sua própria vida não vale a pena e isso tem uma associação ao aumento do número de suicídios. Submetendo a tecnologia à relação entre razão e emoção, podemos dizer que a razão precisa da emoção, do respeito mútuo, da empatia, da comunicação assertiva, da resolução de problemas e tomada de decisão consciente e amorosa, de civilidade. Enquanto não tivermos isso bem desenvolvido, sofreremos os efeitos da tecnologia mal utilizada. A sociedade precisa cuidar do desenvolvimento moral para poder fazer uso do que a razão permite.
4 – No livro Seis Passos para a Cidade Humana, vocês do IPCCIC trabalham com a questão da vida em comunidade, o extramuro escolar, as comunidades, estão sendo acolhedoras? Se não, como a comunidade poderia acolher esse jovem?
Marlene – Nesse capítulo do livro, partimos do pressuposto de que, para vivermos em comunidade, precisamos fazer uma procura interna, uma busca de um sentido que eu tenho pela vida, que me conduz a me aproximar do outro, me unindo a ele para um fazer e esse fazer gera pertencimento e será uma comunidade. Hoje temos medo de nos aproximar do outro, vamos restringir a falar sobre a saúde mental. Acolher as demandas de saúde mental nossa ou do outro, ainda é um tabu muitas vezes, temos medo de nos unirmos e criarmos espaços de fala e escuta para sermos acolhidos e ou acolhermos a dor do outro, e nessa relação construirmos uma comunidade de mudanças e reorganização destes sentimentos. lembremos de Humberto Maturana: “A aceitação do outro junto a nós na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem a aceitação do outro junto a nós não há socialização e sem essa não há humanidade.” Então cada vez mais estamos em busca dessa humanidade. Ir em busca da humanidade é terrível, pois somos seres humanos assim, a humanidade deveria fazer parte de nós. Essa é a grande motivação dos autores do livro “Seis Passos para a Cidade Humana”, reconhecer a nossa condição de humanos e cuidar de nossas relações, reconhecendo que o amor é o verdadeiro mediador de nossas relações, quando não presente, teremos os grandes prejuízos para a humanidade, para uma vida saudável. E o que é viver em comunidade em prol de um objetivo de uma vida mais humana? Para tanto, precisamos aprender a gerenciar nossas emoções, agindo com mais empatia, generosidade, gentileza, facilitando para que o outro consiga resolver suas demandas e em uma relação harmoniosa, o outro nos dará forças também para resolver as nossas. Mas não precisamos esperar receber, é importante estar atento em trazer o amor, como mediador.
5 – Amor como atitude pedagógica é um tema recorrente no trabalho de vocês do IPCCIC, como essa forma de amor poderia ajudar a minimizar esse impacto da violência escolar?
Marlene – Criando ambientes de convivências saudáveis. Hoje temos uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que fala da importância das competências socioemocionais. Então é preciso que olhemos de novo para nossos currículos e que trabalhemos os indivíduos de forma integral. Apartar questões afetivas das escolas é gerar ambientes hostis e de violência. Promover as competências socioemocionais, por meio de várias ações, como o uso de programas já testados vão dar para esse indivíduo condições de pensar, sentir, falar e escutar. Desde 2018, estamos trabalhando com essa proposta e acreditamos que estamos tendo avanços. Existem grupos se mobilizando, como nós do IPCCIC e escolas trabalhando a partir de programas de habilidades socioemocionais, como forma de reflexão e de criação de situações do cotidiano escolar para que todos os autores da escola (alunos, professores, pais e funcionários) possam pensar sobre estratégias de resolução que sejam mais humanas, tendo o amor como atitude pedagógica.